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Publicações

Operações da Polícia Federal e Direitos Fundamentais

27 Janeiro 2023

André Elali
Advogado, Doutor em Direito e Professor Associado da UFRN

“A presunção de inocência é, como adverte Bettiol, antes de tudo um princípio político!  O processo, e em particular o processo penal é um microcosmos no qual se refletem a cultura da sociedade e a organização do sistema político. Não se pode imaginar um Estado de Direito que não adote um processo penal acusatório e, como seu consectário necessário, a presunção de inocência que é, nas palavras de Pisani, um ‘presupposto implicito e peculiare del processo accusatorio penale’.” (Gustavo Badaró)

“O problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não é mais o de que fundamentá-los, e sim protegê-los. O problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico, e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mais sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.” (Norberto Bobbio)

 

I – Importância da Estrutura do Estado em favor da Sociedade.

Não se nega a importância da estrutura dos órgãos do Estado no interesse da sociedade. Os órgãos de Estado têm papel fundamental na implementação dos objetivos da sociedade, desde que em consonância com a ordem jurídica e com o modelo de desenvolvimento proposto no âmbito constitucional1.

As autoridades institucionais detêm a representação do interesse público, devendo obediência aos valores delineados na Constituição. Trata-se de uma premissa elementar do Direito Público.

II – Excessos incoerentes com o modelo jurídico brasileiro.

Situação diferente da premissa acima indicada, entretanto, ocorre quando qualquer órgão/agente de Estado, por eventuais motivações pessoais, ideológicas ou com desvio de finalidade, age sem considerar os limites do próprio Estado.

O elemento nuclear da evolução do sistema do Direito é justamente que este serve para proteger o cidadão do próprio Estado. Uma coisa é o Estado proteger o interesse da sociedade e adotar mecanismos de regulação social eficientes dentro da dinâmica do sistema social. Outra coisa é o Estado se voltar contra parcela da sociedade com base em interesses incoerentes com a sua própria motivação institucional.

Casos de eficiência das autoridades na implementação do controle de atividades ilícitas e ilegítimas são conquistas da sociedade e devem ser reiteradas sempre. Entretanto, casos de excesso, em que os “fins justificam os meios”, não podem ser aceitos moral e nem juridicamente.

As operações das autoridades brasileiras devem ser respeitadas e fomentadas para o fim de controlar os comportamentos alheios à normalidade. Todavia, o que deve ser ponderado, por outro lado, é o campo de atuação sem respeito à legalidade e aos direitos fundamentais. A tutela dos direitos fundamentais não é um mero recurso retórico do jurista, devendo ser cuidadosamente implementada para a proteção do modelo de sociedade e de desenvolvimento do sistema social.

A divulgação de operações, muitas delas pela Polícia Federal, sem contraditório e sem nem sequer direito de defesa, é um ponto controverso e que merece atenção. Isso porque o dano que gera para pessoas ainda inocentes, que poderão ou não se defender de algo que muitas vezes nem existe e nem existirá, deve ser controlado.

O interesse público não pode ser entendido de qualquer forma, porque o interesse público deve se conformar à proteção dos individuais dentro de uma relação de equilíbrio.

Nesse contexto, muitas operações incorrem em comportamentos inadequados e desproporcionais, quiça ilegais e ilegítimos. A produção de provas no Direito exige um processo adequado. O método de produção de provas não pode ser desprezado e violado. Isso gera uma crise de legalidade e de legitimidade que é incompatível com o sistema do direito.

Deve-se evitar, ainda, comportamentos que podem ser considerados abusos de autoridade, atualmente regulados por meio da Lei Federal 13.869, de 2019, que estabelece situações que o sistema veda para o bem comum e para a correta atividade no setor público.

Como exemplos, pode-se questionar a exposição de pessoas a situações de evidente constrangimento, como submeter o suspeito ou preso/indiciado a fotografias e filmagens, por profissionais do mercado de comunicação, que têm acesso seletivo e prioritário a informações sigilosas.

Também se infere uma grande quantidade de indiciamentos e denúncias desprovidas de justa causa no direito penal. Muitas vezes, esses atos são expedidos por meras presunções e por ideologias dos agentes públicos. 

E, como se sabe, para o regular exercício do direito de ação, além do desenvolvimento válido e regular do processo, que se relaciona com o exame dos pressupostos processuais, exige-se a concorrência dos requisitos de admissibilidade do julgamento do mérito, que são as chamadas condições da ação. Genericamente consideradas, e consoante o entendimento doutrinário dominante, são três as condições da ação: a) possibilidade jurídica do pedido; b) legitimação para a causa; e c) interesse processual. A estas três condições, Afrânio Silva Jardim2 adiciona uma quarta: a justa causa, conceituando-a como o suporte probatório mínimo em que se deve fundar a acusação ou a existência de indícios idôneos de autoria e prova da existência do crime. E acrescenta, ainda, que se torna necessário ao regular exercício da ação penal a demonstração, prima facie, de que a acusação não é temerária ou leviana, por isso que lastreada em um mínimo de prova. Este suporte probatório mínimo se relaciona com os indícios de autoria, existência material de uma conduta típica e alguma prova de sua antijuridicidade e culpabilidade. Sustenta, ainda, o autor, que a justa causa não integra os juízos de utilidade e necessidade para a consecução do interesse material, não se confundindo, deste modo, com o interesse processual. 

Seguindo o mesmo raciocínio, a justa causa corresponde ao legítimo exercício da ação penal, além das três outras condições tradicionais, devendo o juiz, quando da propositura da ação penal, examinar sua existência, impondo-se, na sua ausência, a rejeição da denúncia, pela falta de idoneidade e seriedade da acusação.  Inter alia, a doutrina processual penal brasileira, em sua grande maioria, costuma apontar a justa causa (ou fumus boni juris), vista como idoneidade do pedido, como interesse de agir na ação penal condenatória. Nesse sentido, Vicente Greco Filho afirma que “no processo penal, faz parte do interesse processual penal a exigência de ter a ação penal justa causa, definida como o fundamento probatório razoável para sustentar a acusação”3

Da mesma forma, Sidio Rosa de Mesquita Júnior4  considera que a justa causa se evidencia pela presença de indícios do crime e de quem seja o seu autor, dizendo que tais indícios evidenciarão a necessidade da ação penal, o que integra o interesse de agir, não sendo, portanto, uma nova condição da ação. 

Diferente não é o entendimento de Paula Bajer Martins da Costa5, para quem o interesse de agir penal está na necessidade e na justa causa. Justa causa é o fundamento fático e jurídico da acusação, demonstrado na peça acusatória e verificável no inquérito policial ou em peças de informação. A justa causa é o justo motivo para a instauração da ação penal, o que não significa, em absoluto, qualquer antecipação de condenação.

Por sua vez, José Frederico Marques6 assevera que o legítimo interesse é a causa do pedido. Ausente o interesse de agir, falta justa causa para a propositura da ação penal, devendo o juiz rejeitar a denúncia com fundamento no art. 43, inciso III, do Código de Processo Penal, por faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal. A acusação não deixa de ser ameaça de coação e, como esta se considera ilegal sem justa causa (CPP, art. 648, I), é evidente que o legítimo interesse, como justa causa da ação penal, constitui uma condição legal para a propositura desta. E finaliza afirmando que o inciso I do art. 648 do Código de Processo Penal funciona “como norma genérica ou de encerramento, porquanto toda coação antijurídica, que não se enquadra nos demais itens do art. 648, será subsumível no conceito amplo em que se fala em falta de justa causa”.

Já Maria Thereza Rocha de Assis Moura7 opõe-se a essa identidade do interesse de agir com a justa causa, afirmando que (...) A justa causa não constitui condição da ação, mas a falta de qualquer uma das apontadas condições implica falta de justa causa: se o fato narrado na acusação não se enquadrar no tipo legal; se a acusação não tiver sido formulada por quem tenha legitimidade para fazê-lo e em face de quem deva o pedido ser feito; e, finalmente, se inexistir o interesse de agir, faltará justa causa para a ação penal. 

Pode-se afirmar, indubitavelmente, que havendo sido a acusação oferecida com inteira abstração dos elementos informativos colhidos nas peças de informação, de sorte a apresentar-se totalmente divorciada delas, é de rigor a rejeição de qualquer denúncia, por ser tecnicamente inepta, em razão da ausência de justa causa ou suporte fático mínimo para a ação penal.

Como assinala Joseph Raz, o direito deve garantir que as pessoas planejem e configurem seu futuro, respeitando-se suas autonomias8. Afinal, “o Direito é certo ou não é nem mesmo Direito”, como provocara Norberto Nobbio9. Nesse sentido, a ação se qualifica como uma verdadeira petição de generalizações, porquanto não há um elemento sequer que vincule o defendente a qualquer ato improbo, mesmo que indiretamente.

O Ministro Gilmar Mendes, do STF, em diferentes oportunidades, tem destacado, como nos autos no HC n.º 84.409/SP, que: “Denúncias genéricas, que não descrevem os fatos na sua devida conformação, não se coadunam com os postulados básicos do Estado de Direito. [...] Quando se fazem imputações vagas, dando ensejo à persecução criminal injusta, está a se violar, também, o princípio da dignidade da pessoa humana que, entre nós, tem base positiva no art. 1º, III, da Constituição.”

 

III. Legalidade, Tutela dos Direitos Fundamentais e Proporcionalidade.

Não pode faltar à ação penal, ademais, o que o sistema jurídico deve sempre considerar: a proporcionalidade como mecanismo de controle das ações do Estado e para tutelar os direitos fundamentais do cidadão. Baseado no direito germânico, referido elemento, muitas vezes conceituado como princípio (Verhältnismässigkeitsprinzip) e equivocadamente vinculado à razoabilidade (do direito inglês), outras vezes como postulado (norma metódica – norma-método), conforme a doutrina de Humberto Ávila10,  como determinador de soluções Frederich Schauer11, outras como regra, conforme doutrina de Virgílio Afonso da Silva12 sob influência de Alexy, serve para um balanceamento entre meios e fins da ação estatal.

Logo, se por um lado, os direitos fundamentais, na práxis, admitem restrições, especialmente diante do interesse público, por outro aspecto essas restrições são calcadas num cuidado técnico-jurídico vinculado à noção de proporcionalidade, considerado um limite de controle para evitar medidas excessivas13. Os direitos fundamentais vinculam-se à máxima da proporcionalidade14 a partir de 3 (três) pilares: a adequação (Geeignetheit), a necessidade (Erförderlichkeit) e a proporcionalidade em sentido estrito (Verhältnismässigkeit). 

É inadequado um cidadão se sujeitar a um processo penal desprovido de elementos essenciais exigidos pela lei. E adequação, como se sabe, é sinônimo da conjugação de critérios racionais e não-arbitrários15. Reitere-se, nesse sentido, que o meio escolhido pelo sistema jurídico deve ser adequado para atingir o resultado almejado, revelando conformidade e utilidade ao seu fim além de ser o menos excessivo possível à sua consecução. 

Na situação de desequilíbrio entre meios e fins, apresenta-se desproporcional determinada ação estatal, exigindo-se a intervenção judicial para evitar-se distorções, tratamentos jurídicos arbitrários e desvios de finalidade. Exige-se, logo, adequação e vinculação. 

Em decorrência do abuso do direito de ação ora verificado, afronta-se, também, a segurança jurídica, porquanto se permite a tramitação de ação desprovida de fundamentos quando a jurisprudência é pacífica em rejeitar ações temerárias, gerando uma sensação inaceitável de injustiça e de tratamento anti-isonômico.  Não é demais relembrar a lição de Geraldo Ataliba no sentido de que: “O Direito é, por excelência, acima de tudo, instrumento de segurança. Ele é que assegura a governantes e governados os recíprocos direitos e deveres, tornando viável a vida social. Quanto mais segura a sociedade, tanto mais civilizada. Seguras são as pessoas que têm certeza de que o Direito é objetivamente um e que os comportamentos do Estado ou dos demais cidadãos dele não discreparão.”16 

IV – Conclusões.

A atividade das autoridades brasileiras é fundamental na implementação da ordem jurídica prevista na Constituição. Excessos, entretanto, não são adequados e nem proporcionais quando realizados por autoridades públicas, devendo haver controle e repressão, seja por força da tipificação de possíveis abusos de autoridades, seja por conta do interesse público que, neste ponto, coincide com a proteção dos direitos fundamentais.



1 “O Direito da sociedade global também enfrenta semelhantes desafios. A agitação existencial que resulta do processo de ‘degradação’ ou metamorfose priva o Direito de uma garantia determinista de uma essência. Nenhuma entidade estranha pode garantir o Direito, seja a razão, o Estado, ou Deus. E isto também se aplica à autoreferência do próprio Direito e a qualquer noção de sua singularidade e insubstitubilidade.” Cf. Ricardo Campos. Metamorfoses do Direito Global. São Paulo: Metamorfose, 2022, p. 39.
2 Cf. Afranio Silva Jardim. Direito Processual Penal, p. 54.
3 Cf. Vicente Greco Filho. Manual de Direito Penal, p.109.
4 Cf. Sidio Rosa de Mesquita Júnior. Prescrição Penal, pp. 30-31.
5 Cf. Paula da Costa. Ação penal condenatória, p.97.
6 Cf. José Frederico Marques. Elementos de Direito Processual Penal, Vol. II., pp. 472.
7 Cf. Thereza Rocha de Assis Moura. Justa Causa para a Ação Penal. Doutrina e jurisprudência, pp. 221.
8 Cf. Joseph Raz. The Authority of Law. Essays on Law and Morality, Oxford, Clarendon, 1979, p. 221.
9 Cf. Norberto Bobbio. La Certezza del Diritto é un Mito?, in Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, n. 28, p. 150.
10 Cf. Humberto Ávila. Teoria dos princípios. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 102
11 Cf. Frederick Schauer. Formalism. In: TheYale Law Journal, v. 97, n. 4, mar. 1988, p. 537.
12 Cf. Virgílio Afonso da Silva. O Proporcional e o Razoável. In: Revista dos Tribunais 798 (2002): 23-50.
13 “Compreende-se o denominado ‘princípio’ da proporcionalidade, a Grundsatz der VerhältnismäBigkeit, também chamado de mandamento da proibição do excesso (Ubermabverbot) como um guia à atividade interpretativa, que indiscutivelmente apresenta grande liberdade de atuação, tendo em vista os fins a serem atingidos, e a exigibilidade da escolha destes. Ressalta-se ainda que a proporcionalidade e a razoabilidade costumam ser empregadas indiferentemente.” Cf. Celso Ribeiro Bastos. Hermenêutica e interpretação constitucional, 2. ed., São Paulo, Celso Bastos – Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999, p. 185. 
14 “A natureza dos princípios implica a máxima da proporcionalidade, e essa implica aquele. Afirmar que a natureza dos princípios implica a máxima da proporcionalidade significa que a proporcionalidade... decorre logicamente da natureza dos princípios, ou seja, que a proporcionalidade é deduzível dessa natureza. O Tribunal Constitucional Federal afirmou, em formulação um pouco obscura, que a máxima da proporcionalidade decorre, ‘no fundo, já da própria essência dos direitos fundamentais’ (BVerfGE 19, 342 (348-349); 65,1(44))”. Cf. Robert Alexy. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 116.
15 Cf. Neil MacCORMICK. Argumentação Jurídica e Teoria do Direito, p. 326.
16 Cf. Geraldo Ataliba. República e Constituição, p. 184.